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2012-05-08

Intendência humana do mundo não-humano: Direito, dever ou equívoco.

Artigo de opinião que escrevi recentemente e foi publicado no website do PAN — Partido pelos Animais e pela NaturezaDeixo aqui o texto integral.

O escândalo que envolveu a Casa Real Espanhola nos últimos dias levaram-me a escrever esta pequena reflexão. Pessoalmente, não tenho grandes dúvidas em classificar de grotesco e buçal o comportamento de Juan Carlos I. A legalidade do ato não está causa, o que está em causa é a sua moralidade. É precisamente nesta fronteira que parecem emergir alguns conflitos entre os que defendem o direito individual à vida e os que reclamam que o equilíbrio do ecossistema é um bem maior e que, se necessário, é aceitável o sacrifício de alguns espécimes. No entanto, parece-me que o que de facto está em discussão é a Intendência que, legitimamente ou não, a espécie humana decidiu assumir sobre o mundo natural e que me proponho a discutir a partir de três perspetivas distintas: a intendência enquanto direito; a intendência enquanto dever e o equívoco da presunção de intendência.

O direito à intendência humana do mundo natural suporta-se no antropocentrismo ocidental legitimado por uma mundividência judaico-cristã onde a centralidade do Homem (que se confunde com o homem) é um direito divinamente concedido. O mundo é criado ex nihilo por Deus e entregue à intendência humana: “Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra” Génesis (1:28).
O empreendimento científico da Europa pós medieval desenvolve-se num contexto do antropocentrismo judaico-cristão. É neste contexto histórico, tomando por garantido que toda a criação existe para o bem da humanidade, legitimando o domínio humano sobre o mundo não humano como o direito e poder, divinamente concedido, de apropriação e uso do mundo natural em benefício próprio, que o inglês Francis Bacon (1561 – 1626) procura implementar a Instauratio magna (Grande Restauração) acabando por banalizar a ideia de que a ciência é O Instrumento através do qual a humanidade poderá cumprir o destino que Deus lhe reservou e explicitou no livro do Génesis (1:28). Esta instrumentalização baconiana do empreendimento científico perpétua a ideia de descontinuidade biológica dos humanos em relação às outras espécies, que se havia enraizado na mundividência da Europa medieval, e é sublinhada por outros pensadores como o francês René Descartes (1596 — 1650) que atribui à espécie humana a exclusividade da razão e da senciência.
A ciência moderna, inicialmente circunscrita à Europa e, posteriormente, ao ocidente industrializado, desenvolve-se em torno das ideias empreendedoras de Bacon e do racionalismo cartesiano. A validade do conhecimento científico é legitimada pelos processos metodológicos da ciência e esta desenvolve-se com a presunção de neutralidade epistemológica (cultural) e de descobridora de verdades. Até meados do século XIX mantém-se a ideia de descontinuidade biológica entre a espécie humana e as restantes espécies quando é posta em causa, pelo menos no contexto da comunidade científica, pela crescente aceitação do darwinismo e, já no século XX, do neodarwinismo. Contudo, apesar de revolução cultural que o darwinismo iniciou, apenas conseguiu combater a ideia da descontinuidade biológica entre os humanos e as restantes espécies; a questão da intendência e uso do mundo natural não se coloca. A ideia da ciência como instrumento para domínio do mundo não humano não só se mantém, como se acentua com as conquistas conseguidas pelos desenvolvimentos tecnológicos da revolução industrial e da primeira metade do século XX. Com a industrialização e o definitivo estabelecimento do capitalismo, a possibilidade de domínio do mundo não humano assume novos contornos. O manancial energético disponibilizado pela utilização das energias fósseis, associado a um desenvolvimento e crescimento tecnológico impulsionado pela sociedade de consumo, constroem a falácia do crescimento económico ilimitado e exploração do mundo natural enquanto fonte, igualmente ilimitada, de recursos. Somente na segunda metade do século XX é que se começa a por em causa a possibilidade e legitimidade de domínio do mundo não humano.
A emergência do movimento ambientalista nas décadas de 50 e 60 é frequentemente associada à publicação, nos E.U.A. de dois livros pioneiros: o primeiro, da autoria de Aldo Leopold, A Sand County Almanac, publicado postumamente pelo seu filho, em 1949, desenvolve a ideia de uma ética da Terra ou de uma relação ética e responsável entre as pessoas e a terra que habitam; o segundo, talvez mais conhecido, foi publicado, em 1962, por Rachel Carson e fala-nos de uma primavera sem pássaros porque foram mortos pelos químicos usados na agricultura. Silent Spring, adverte para o facto de os pesticidas estarem não só a matar pássaros; mas também outros animais, incluindo os humanos.
Não questionamos a mais-valia que é o reconhecimento da problemática ambiental. O que questionamos, é o paradigma subjacente à operacionalização desta preocupação que insiste no direito de apropriação humana do mundo não humano. De facto, trata-se de mais uma extensão do capitalismo neoliberal que apropria o discurso ecológico e o reverte a seu favor. A marca verde ganha proporções e os investidores passam a usá-la sem escrúpulos ludibriando o consumidor menos atento. O dever de intendência ao mundo não humano legitima que se confine a vida selvagem a parques e reservas naturais, que se destruam florestas, que se explorem à exaustão recursos naturais e que se transforme o mundo numa coisa que pode ser manipulada e usada como o intendente decidir. Em última instância, é o intendente, por via da engenharia genética que toma as rédeas da evolução e se substitui ao Criador judaico-cristão. É fácil cair na falácia teleológica e não questionar a mundividência base, a ecosofia, que subjaze às decisões e à forma como interagimos com as outras espécies e com os ecossistemas. Não o fazer é, como disse o filósofo norueguês Arne Naess (1912 — 2009), ficarmo-nos pela superficialidade da ecologia tecnocrata.
O final do século XX e a primeira década do século XXI veem a crítica da relação do humano com o mundo não humano assumir contornos de massificação e alargar-se a outras esferas da ação humana além da ecológica. Uma relação de domínio milenar, exportada para o resto do planeta por via da globalização da cultura científica no pós-guerra, é finalmente posta em causa com o questionamento que parte de uma elite crítica e educada. Contudo a crítica não é feita somente no contexto da ecologia; o discurso de proteção ambientalista é transcendido e estabelecem-se relações entre a capacidade do ecossistema global ser capaz de sustentar a vida humana e não humana e a economia de consumo, a predação dos recursos naturais, o crescimento demográfico e, mais recentemente, os hábitos alimentares dos humanos. Critica-se o neoliberalismo e o capitalismo predatório que tudo coisificam e tornam descartável, em função do seu valor (ou ausência dele) utilitarista. Surgem os movimentos pós-humanistas que exigem a atribuição de valor intrínseco não só à pessoa humana, mas igualmente ao mundo não humano.
A ideia da intendência humana sobre o mundo não humano como um dever, em vez de um direito, emerge no contexto destes movimentos ambientalistas e conservacionistas que, sustentados no conhecimento científico, assumem uma posição tecnocrata de gestão do mundo natural. O desenvolvimento do conhecimento científico no geral e o evolucionismo, em particular, conduzem a que a intendência humana seja vista, não como um direito divinamente atribuído, mas como uma necessidade que decorre da capacidade singular que a nossa espécie tem de alterar e modificar os ecossistemas (locais e global). Este é o discurso hegemónico defendido por ambientalistas e ecologistas técnicos um pouco por todo o mundo. Seria ilusório não reconhecer neste discurso uma adaptação científica do discurso subjacente à intendência como um direito. De facto, esta nova posição pouco se altera em relação à anterior; ainda que a intendência seja, agora, vista como um dever que resulta das capacidades da espécie humana, subjacente a este dever está o direito de apropriação e uso do mundo não humano, ainda que se deva tomar em conta a sua conservação.
É sem dúvida um discurso radical, não no sentido de extremista, como demasiadas vezes o gostam de comparar, mas no sentido etimológico do termo; é radical porque assenta na raiz do problema: o discurso milenar que sempre busca razões que legitimam da intendência humana, tacitamente transmitido na herança do senso comum, só pode ser tomado como um grande equívoco. Se não fosse esse o caso, como se pode então compreender que um planeta com uma história de 4,6 mil milhões de anos tenha prosperado durante a maior parte da sua existência sem os humanos, que apenas surgiram há 200 mil anos e se industrializaram à 200? Só mesmo um grande equívoco pode justificar tal presunção humana.
A pós-modernidade e os movimentos pós-humanistas apoderam-se, progressivamente, do discurso crítico; simultaneamente, apropriam-se das ferramentas de comunicação global para o difundir e criar uma subcultura que questiona a legitimidade dos modelos de gestão hegemónicos. Um discurso que questiona o propósito moderno que Bacon postulou à ciência e exige desta uma perspetiva mimética capaz de compreender o mundo e de integrar as atividades humanas nos seus ciclos promovendo a adoção de uma relação de simbiose entre humanos e não humanos. Uma ciência que permita, como diz o escritor Moçambicano Mia Couto, não o domínio do mundo, mas a criação de harmonias e linguagens de partilha.
Permito-me, agora, voltar ao mote desta reflexão: a caçada ao elefante levada a cabo pelo Rei de Espanha. A (questionável) legalidade deste ato só pode ser concebida num contexto que valida e reconhece a intendência humana do mundo não humano, quer como direito ou dever. Contudo, reconhecer esta pretensão de intendência é legitimar que se construam fronteiras artificiais e se confine a vida não humana a reservas e espaços definidos. É aceitar que o mundo é dos humanos que a apropriação é legítima e que a conservação das outras espécies possa ser encarada como um negócio que só fará sentido se for rentável. Coisificamos o mundo não humano e uma boa parte do mundo humano e transformamo-lo em mais uma forma de enriquecer poucos à custa de muitos.
O problema é muito mais profundo do que a gestão artificial e tecnicista de uma população de uma determinada espécie; trata-se de repensar as relações que, enquanto espécie, conseguimos estabelecer internamente e com o mundo não humano. Mesmo que aceitemos a inevitabilidade, ainda que transitória, de gestão artificial da vida selvagem, não será com certeza legítimo fazer da morte uma forma de obter lucro, mesmo que esse lucro reverta a favor da conservação dessa e de outras espécies. Também aqui os fins não justificam os meios. O caráter grotesco e buçal do ato do Rei Juan Carlos tem a sua génese no ridículo; o prazer retirado da vaidade exibicionista é sempre ridículo; o que o torna grotesco e buçal é a inutilidade do sofrimento que é infligido a um animal e aos seus companheiros, porque se trata de uma espécie gregária com fortes hábitos e laços sociais,. Mesmo que nos localizemos no (questionável) quadro em que se aceita o dever de intendência e, consequentemente, a necessidade de gerir e tirar a vida a alguns indivíduos, este ato não pode nunca ser revestido num clima de festa e celebração. É claro que também aqui a lógica do capitalismo predatório neoliberal se faz sentir. Tudo é vendável e descartável — pessoa, animal ou natureza — depende somente do valor acrescentado que se consegue atribuir.
É urgente que repensemos a nossa relação com o planeta. Somente a necessidade de criar uma Reserva da Vida Selvagem é um sério indício que há mais de demens que de sapiens na relação que a única espécie viva do género Homo estabelece com o planeta que habita.


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