Páginas

2012-05-14

As origens da Ciência

As Origens da Ciência é o nome de um artigo que publiquei o ano passado na Paideia, a revista de Ciência e Cultura da Escola Secundária de Peniche. Se preferires podes descaregar o pdf aqui.

Introdução
Dificilmente encontrarei quem discorde comigo quando afirmo que na base das transformações sociais, que conduziram ao mundo globalizado do século XX, está o conhecimento científico. A ciência e a tecnologia transformaram a relação dos humanos com o mundo não humano, (re)construíram sociedades e influenciam a vida quotidiana de todos os habitantes (humanos e não humanos) do planeta. À primeira vista, pode parecer exagerado dizer que a ciência influência a vida de todos os habitantes (não humanos) do planeta. Como posso afirmar que um inseto perdido no arvoredo de uma floresta tropical pode ser influenciado pela ciência? A resposta a esta pergunta é dada pela própria ciência. A compreensão da interligação da complexa teia da vida planetária (Capra, 1997) associada ao reconhecimento do poder de intervenção que o Homo sapiens sapiens tem no mundo (Almeida, 2006), iluminam a resposta à questão que coloquei anteriormente. Com efeito, as alterações climáticas antropogénicas impõem constrangimentos a todos os nichos ecológicos da Terra. A aventura da ciência chega a um ponto em que, mais do que saber ciência é importante saber sobre a ciência (Murcia, 2009); compreender como é produzida, entender a sua estrutura interna, conhecer as suas relações com a sociedade e a tecnologia e desenhar o seu papel na construção de um futuro inevitavelmente global e tecnológico.
As disciplinas metacientíficas, desde as mais tradicionais história e filosofia da ciência, às mais recentes sociologia e psicologia da ciência, procuram deslindar e teorizar o que está por detrás do conhecimento científico; como afirma Carrilho (1994), as metaciências têm como objetivo compreender, descrever e determinar as características do que é específico da cientificidade. A forma como as sociedades olham e valorizam o conhecimento científico tem implicações profundas na sua organização e na sua relação com o mundo não-humano (Almeida, 2006; Figueiredo, Almeida, & César, 2004). Esta é, talvez, a principal razão que me leva a defender a importância de promover um conhecimento circunstancial do conhecimento científico; um conhecimento que não se afaste dos contextos onde foi produzido, mas os abrace e os valorize como instrumentos capazes de dar significado social e histórico a um instrumento epistémico, que pelo seu poder, se exige democrático na distribuição e na construção.
Vivemos na sociedade do conhecimento (Hargreaves, 2003) e ter conhecimento é um trunfo nas sociedades do século XXI. Desde a segunda metade do século XX que conhecimento equivale a poder. Como exemplo desta equivalência posso referir o investimento que, durante a Segunda Guerra Mundial, os Aliados fizeram na investigação científica, que conduziu à construção da bomba atómica e lhes deu a vitória. Porém não é a este tipo de poder que me refiro; nem ao poder de construir artefactos e bens de consumo – frequentemente supérfluos – que depois de colocados no, insano e sôfrego, mercado global geram riqueza para alguns e dissabores para muitos. O poder mais importante que provém de sociedades (ou setores sociais) cientificamente literatos é a possibilidade de se construírem mundividências operativas do real; artefactos intelectuais, que podem ser colocados no mercado a baixo preço (ou mesmo a preço zero) e são capazes de mover e mudar paradigmas e sociedades, fazer revoluções e construir realidades. Um cidadão que domine o conhecimento científico poderá dar um contributo mais eficaz e esclarecido nas decisões sociais da comunidade onde está inserido. Uma sociedade cientificamente educada é uma sociedade mais esclarecida e, consequentemente, mais democrática.
A ciência inspirada nas conceções setecentistas e oitocentistas mostrou-se por vezes arrogante e colonizadora dos saberes tradicionais sobretudo de culturas distantes da cultura ocidental. Demasiadas vezes, saberes de sociedades tradicionais foram colocados, levianamente, na prateleira das superstições e dos mitos sem interesse algum, além da curiosidade exótica que despertam. Saberes, hoje reconhecidos, como tendo sido capazes de gerir a relação dos humanos com o mundo não-humano de forma muito mais harmoniosa e integrada do que a ciência algumas vez conseguiu. Mas a ciência não excluiu somente saberes; juntamente com esses saberes foram excluídas indivíduos, setores sociais e mesmo sociedades inteiras, do acesso ao conhecimento científico que é a norma. Porém, certamente que o leitor concordará comigo, quando refiro que uma das maiores (se não mesmo a maior) qualidade da ciência é a sua capacidade de se criticar e renovar; é precisamente no seio desta capacidade que surgem novos olhares sobre a ciência e sobre a forma como esta se constrói e evolui; é no caldo desta autocrítica que se identificam e rescrevem novas características de cientificidade e a ciência assume um novo papel neste mundo que ela própria inventou.
Para começarmos a vislumbrar melhor o que é afinal esta grande aventura da ciência iremos procurar discernir quais são as suas origens.
Scientia é conhecimento
A palavra portuguesa ciência tem origem no vocábulo latino scientia cujo significado é “o conhecimento de…”; depois de procurar noutras línguas como é o caso do espanhol, do francês do italiano ou do inglês verifiquei que os termos usados para designar esta área do conhecimento são idênticos – la ciencia, em espanhol; science, em inglês; la science, em francês e scienza, em italiano – e com origem no termo latino que referi. Também encontrei designações idênticas em línguas de origens distantes como é o caso do japonês que transformou o vocábulo latino em サイエンス (saiensu). Noutras línguas europeias encontrei palavras com origens distintas do latim scientia, mas com sentido idêntico. É o caso do alemão onde ciência se designa por wissenschaft e pode ser traduzido por comunidade (schaft) do conhecimento (wissen); nas línguas aparentadas com o alemão, como o dinamarquês ou as línguas escandinavas, são usados termos idênticos ao exemplo germânico. Em grego ciência diz-se επιστήμη (epistí̱mi̱) que significa conhecimento e em hindu विज्ञान (vijñāna) que pode ser traduzido por conhecimento ou sabedoria. A minha limitada cultura linguística não me permitiu ir mais longe neste domínio, mas desconfio que na maioria das línguas a designação deste cânone de conhecimentos tenha seguido padrões idênticos aos que descrevi. Posso então afirmar, com alguma segurança, que a nível mundial o termo ciência é conotado com conhecimento. Mas que conhecimento, que sabedoria é esta que têm direito a designação própria – ciência? Onde surgiu? Como evoluiu? Quais as suas características?
Um jantar com discurso
Em Londres, no dia 27 de Outubro de 1930, decorreu um jantar em honra de Albert Einstein (1879 – 1955); George Bernard Shaw (1856 – 1950) é incumbido de proferir o discurso de homenagem ao cientista, intitulado An appreciation. A determinada altura do discurso Shaw diz: 
“Estes oito grandes homens [Pitágoras, Ptolomeu, Kepler, Copérnico, Aristóteles, Galileu, Newton e Einstein] foram os fazedores de um dos lados da humanidade, que apresenta dois lados. A um dos lados chamamos religião e ao outro ciência. A religião está sempre certa. A religião protege-nos do grande problema que todos teremos de enfrentar. A ciência está sempre errada; é o próprio artifício dos homens. A ciência não consegue resolver um problema sem levantar dez novos problemas” (Einstein, 1931/2009, p. 33).
Bernard Shaw deixa transparecer algumas das características da ciência, nomeadamente a sua capacidade de se questionar e buscar soluções ainda que efémeras e circunstanciais. No entanto, e como Bernard Shaw sublinha, é esta característica – ainda que não seja a única – que lhe permite o mérito de distinção de outras áreas do conhecimento, como a religião. Parece-me que, numa primeira análise, talvez esta característica não seja exclusiva da ciência, mas não posso negar que ela está subjacente àquilo que costumamos, numa asserção de senso-comum, apelidar de conhecimento científico. Mas não posso ficar por aqui. Não é minha intenção responder às perguntas que coloquei anteriormente, nem mesmo discuti-las de forma sistemática, uma a uma; irei antes procurar apresentar alguns olhares que influenciaram a construção da minha perspetiva sobre o que é a ciência.
As origens
Parece-me interessante procurar as origens do empreendimento científico; porém, estou consciente que, tal como refere Fara (2009), localizar no espaço-tempo as origens da ciência, longe de constituir um consenso na comunidade científica, é uma decisão pessoal, subjetiva e circunstancial.
Não é incomum deparar-me com afirmações que atestam que a ciência (moderna) se iniciou com as ideias revolucionárias de Copérnico e Galileu. Muitos cientistas (e talvez ainda mais não-cientistas), tal como Gribbin (2003) e Bryson (2005), indicam o ano de 1543 – data publicação do De Revolutionibus Orbium Coelestium, de Nicolau Copérnico – como o ano em que as ideias científicas modernas começaram a tomar forma. Serei, contudo, injusto para com os filósofos da Grécia Helénica – reconhecidos como cientistas de pleno direito no discurso de Bernard Shaw – se assumir esta data como o início do empreendimento científico.
Não precisarei argumentar muito para reclamar o estatuto científico do teorema de Pitágoras, da geometria de Euclides ou da física de Aristóteles e Ptolomeu. Em relação aos dois primeiros, a atribuição do estatuto é pacífico. Talvez os personagens sejam, mais frequentemente, olhados como filósofos do que como cientistas, mas a aplicabilidade atual das suas ideias no domínio da ciência permite que o estatuto de ciência lhes seja atribuído de forma consensual. O mesmo não poderei afirmar das ideias de Aristóteles e Ptolomeu. O facto de as suas teorias terem sido refutadas e de a sua refutação coincidir com a emergência do empreendimento científico moderno, conduz a uma maior dificuldade da atribuição do estatuto de científico à física de Aristóteles e ao modelo geocêntrico de Ptolomeu. Esta conceção alternativa leva a que muitos professores quando se referem, nas suas aulas, às teorias científicas refutadas, conduzam os alunos 
à consideração frequente de que os nossos antecessores sofriam de uma certa ingenuidade coletiva, já para não referir situações nas quais essas teorias são apresentadas como claro sinal de insensatez, em que conceções desprovidas de cientificidade são contrapostas às ideias atuais, estas sim «científicas» [aspas no original], verdadeiras e definitivas (Almeida, 2000, p. 29).
Este ideia parece-me particularmente bizarra se tiver em conta que, à semelhança do geocentrismo aristotélico refutado por Copérnico e Galileu, também a mecânica de newtoniana for refutada, mas, desta feita, por Einstein. Ainda que a mecânica clássica continue a ser útil e usada em inúmeras aplicações científicas e tecnológicas, a verdade é que os pressupostos ontológicos onde ela assenta foram derrubados. O espaço absoluto de Newton, palco de todos os eventos que se davam num tempo também ele absoluto e com uma cadência única para todo o universo, foram substituídos pelo estranho mundo da relatividade, onde o espaço e o tempo perdem o seu caráter absoluto e passam a ser grandezas dependentes da velocidade do corpo em estudo e do observador. Também a velha física de Aristóteles e Ptolomeu ainda tem as suas aplicações atuais. O que é uma carta celeste, se não uma representação geocêntrica de uma pequena porção do Universo? Da mesma forma que usar uma carta celeste não obriga o indivíduo  a aceitar uma conceção geocêntrica do mundo, também o uso da mecânica clássica não leva a uma aceitação dos seus pressupostos ontológicos. 
Parece-me que as razões que levam a um tratamento discriminatório das diversas teorias científicas se prendem mais com as conceções acerca da ciência, que com a natureza das teorias em causa. Reabilitado o estatuto científico de algumas mundividências dos filósofos  helénicos, talvez tenha conseguido encontrar as coordenadas espácio-temporais do início da atividade científica. Porém, se assim o fizesse assumiria uma posição eurocêntrica com algum cunho colonialista. Tal como afirmou Bernard Shaw, por cada resposta dada, dez novas se colocam…
Fora da Europa, antes colonização, também se fazia ciência e são várias as evidências dessa situação. Na minha opinião, a mais elegante evidência da universalidade dos contributos para construção científica é utilizada diariamente por todos nós; tem usos tão corriqueiros como determinar o preço a pagar pelo pequeno-almoço até aos sofisticados cálculos que mantém satélites em órbita e o mundo tecnológico a funcionar: trata-se do sistema de numeração decimal, vulgarmente conhecido por numeração árabe, mas que deveria ser apelidado de numeração indiana. Este sistema, introduzido por Leonardo Fibonacci (1170-1250) na Europa do século XII, deve o seu nome ocidental ao facto de o referido matemático o ter aprendido através dos árabes. No entanto, sabe-se – e são várias as lendas que o atestam – que os árabes os aprenderam com os indianos. Na verdade, este sistema já era usado em textos védicos datados de 1500 a.e.c. – um milénio antes do nascimento de Aristóteles. Sem me querer alongar demasiado neste assunto, é importante denotar os contextos culturais onde se desenvolve o sistema e, em particular, o conceito do número 0 (zero). Em sânscrito zero escreve-se शून्य (śūnya), termo do qual deriva a palavra शून्यता (śūnyata) que os ingleses traduziram por emptiness e os portugueses por vacuidade. No complexo sistema filosófico indiano शून्यता (śūnyata) significa, numa asserção muito simplista, um vazio de identidades e individualidades; o reconhecimento de que cada elemento apenas existe enquanto constituinte do todo. Sempre que reflito nesta questão não deixo de me perguntar se este imprescindível conceito poderia ter surgido noutro contexto cultural que não o da Índia védica.
As instâncias multiplicam-se. Apenas a título de exemplo cito os conceitos de átomo e molécula presentes na sofisticada cosmologia atómica da escola वैशॆषिक (vaiśeṣika) fundada pelo filósofo indiano कणाद (kanada) no século II a.e.c. Colocando as coisas de uma forma muito resumida, posso adiantar que कणाद (kanada) afirmava que o universo era constituído por um número finito de partículas indivisíveis – átomos – que, em determinadas circunstâncias se podiam associar em estruturas mais complexas – moléculas (Hamilton, 2001). Para terminar esta incursão pelo oriente gostaria de referir a medicina tradicional chinesa – vulgarmente conhecida como acupuntura – cujos registos escritos remontam ao século II a.e.c., mas os testemunhos arqueológicos levam a que alguns historiadores datem o início desta prática no Neolítico (ca. 9500 a.e.c.).
Recordo o que Fara (2009) diz sobre a pessoalidade do estabelecimento das coordenadas espácio-temporais do início do empreendimento científico. Segundo esta autora, por conveniência da sua narrativa, situa-se no século XXI a.e.c. na bacia da Mesopotâmia e nos desenvolvimentos matemáticos do sistema sexagesimal, aos quais devemos ainda o formato de medida do tempo diário (1 hora = 60 minutos e 1 minuto = 60 segundos). Trata-se apenas de mais uma opção de conveniência.
Leis e teorias
Antes de prosseguir com a próxima discussão sobre as origens do conhecimento científico, é importante fazer uma pausa para esclarecer o leitor sobre algumas questões organizativas deste conhecimento. Existe uma conceção comum de que o conhecimento científico está estruturado de uma forma hierárquica que pode ser representada pelo esquema da figura 1.
Nesta conceção o cientista, partindo das observações do fenómeno, identifica (melhor será dizer constrói) padrões a partir dos quais formula hipóteses; as hipóteses são sujeitas a ensaios empíricos e transmutam-se em teorias; as teorias, se resistirem ao passar dos tempos, acabam por ser reconhecidas como leis generalistas. Esta ideia está fortemente enraizada nas conceções de senso-comum sobre a ciência. Exemplo disso é o uso que alguns cristãos conservadores – que defendem o ensino do criacionismo bíblico como teoria alternativa viável ao evolucionismo – fizeram dela. Estas pessoas defendem que o evolucionismo é apenas uma teoria científica e não uma lei e que por isso ainda não está definitivamente provada (Dawkins, 2009).

Figura 1 - Conceção comum da estrutura hierárquica do conhecimento científico.
Ainda que consiga encontrar algum paralelismo entre algumas instâncias da história da ciência e as duas primeiras etapas da figura – observações e hipótese – como o estabelecimento empírico das relações entre volume e pressão de um gás, por exemplo, as conceções sobre as duas etapas seguinte não poderiam estar mais longe da realidade. Procurarei então esclarecer as diferenças entre uma teoria e uma lei (ou princípio) científico.
Para clarificar a situação, usarei a Lei (ou princípio) da Gravitação Universal, enunciado por Isaac Newton (1643 – 1727) na sua obra-prima Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica, publicada pela primeira vez em 1687. De acordo com Newton todos os corpos no Universo estão sujeitos a atração mútua por ação da força gravítica. A intensidade dessa atração (Fg) é diretamente proporcional às massas (m1 e m2) dos corpos que se atraem, inversamente proporcional ao quadrado da distancia (R) que os separa e a constante de proporcionalidade é a Constante de Gravitação Universal (G). Em linguagem matemática pode escrever-se:
.
Como o próprio nome indica este enunciado constitui uma lei ou um princípio e não uma teoria. Subjacente a esta classificação está o facto de a Lei da Gravitação Universal estabelecer uma relação entre quatro variáveis – a força gravítica a que os corpos estão sujeitos, as massas dos corpos que se estão a atrair e a distância que os separa. Contudo esta lei da física não dá qualquer justificação para que esta atração se dê, nem explica a sua natureza. Somente estabelece, de um modo empírico, a relação – neste caso quantitativa – entre as diferentes variáveis em jogo. Newton nunca estabeleceu uma teoria da gravitação. Ele reconhece que apesar de ter sido capaz de quantificar a força gravítica, não tem qualquer explicação para a atração universal, nem tem nada a dizer sobre a natureza desta atração. Não tendo melhor explicação acaba por dizer que os corpos se atraem por ser essa a vontade de Deus.
Somente no século XX é que Einstein avança com uma explicação para a atração universal a que todos os corpos do Universo estão sujeitos. Einstein, compreende que aquilo que Newton dizia ser a vontade de Deus, pode ser explicado por um espaço-tempo flexível que se curva perto de corpos materiais com massa, sendo que essa curvatura é tanto mais acentuada quanto maior for a massa do corpo e menor for a distância do corpo ao ponto do espaço-tempo considerado. Num espaço curvo, os planetas não podem deslocar-se em linha reta e descrevem órbitas (quase) fechadas em torno do Sol. Não é minha intenção alongar-me em explicações detalhadas da relatividade. Para a discussão em causa, basta que o leitor saiba que, na perspetiva de Einstein, a relação estabelecida por Newton mantém-se válida, mas há uma explicação do processo pelo qual os corpos se atraem. É por isso que posso afirmar que Einstein estabeleceu uma teoria da gravidade enquanto Newton avançou com um princípio relacional da mesma. Esta é a diferença entre uma Teoria e uma Lei. Enquanto que a teoria explica e descreve os processos por que determinado fenómeno ocorre, as leis (ou princípios) estabelecem relações entre duas ou mais variáveis. Também Aristóteles tinha construído uma teoria da gravidade. Quando o filósofo estabelece a sua cosmologia dos quatro elementos – Terra, Água, Ar e Fogo – e explica que uma pedra cai (ou afunda) ou que o fogo de uma fogueira se eleva no ar porque ambos procuram o seu lugar natural, está a construir uma teoria da gravidade e explica o comportamento dos corpos com base na sua constituição elemental. Julgo que, de uma determinada perspetiva, Aristóteles foi mais longe que Newton na explicação da gravidade.
A ciência encontra-se cheia de episódios de leis que foram estabelecidas empiricamente e cujas teorias explicativas foram desenvolvidas mais tarde. Somente a título de exemplo indico duas instâncias: uma no domínio da química-física e outra no âmbito da biologia. No primeiro caso, refiro-me àquela que ficou conhecida pela lei de Boyle-Mariotte, e que estabelece a relação quantitativa entre a variação da pressão e do volume de uma massa de gás, que se encontra a temperatura constante. Robert Boyle (1627 – 1691) publicou esta lei em 1662; no entanto, apenas em 1738 é que Daniel Bernoulli (1700 – 1782) desenvolve a Teoria Cinética dos Gases que fornece uma explicação para que os valores do volume e da pressão de um gás se relacionem da forma como Boyle havia estabelecido. Também no domínio da biologia encontramos leis que foram estabelecidas muito antes das teorias que as explicam. Um exemplo são as conhecidas Leis da hereditariedade de Gregor Mendel (1822 – 1884). O frade austríaco, recorrendo ao cruzamento de diversas variedades de ervilheiras de cheiro, conseguiu identificar e estabelecer alguns padrões que regulam a hereditariedade de determinadas características. A teoria que viria a descrever o processo como as características são herdadas só surgiu após o isolamento da molécula de DNA, por James Watson (1928 – ) e Francis Crick (1916 – 2004), no princípio da década de 50 do século XX.
Tecno-ciência
A clarificação que acabei de fazer acerca das diferenças entre as teorias e as leis científicas é importante para enquadrar a reflexão que se segue sobre as origens da ciência. Na segunda metade do século XVIII, mais propriamente entre 1763 e 1775, James Watt (1736 – 1819) desenvolve a máquina a vapor a partir de modelos anteriores mais rudimentares. Sendo uma máquina térmica, o seu funcionamento é descrito pelas leis da termodinâmica. No entanto, estas leis, ao invés de servirem de base para a conceção e projeto da máquina a vapor, surgem bastante tardiamente – algumas mais de cem anos depois da invenção de Watt. Este é um dos vários exemplos do desenvolvimento de uma tecnologia, que antecede a construção de uma teoria que a suporta. Trata-se de um desenvolvimento fundado em princípios empíricos e em processos de tentativa-erro. Na realidade, o aperfeiçoamento das máquinas térmicas conduziu à construção de muitas das ideias que estão hoje subjacentes à termodinâmica moderna. É um exemplo claro de como ciência e tecnologia são uma só realidade e não duas realidades distintas como muitos parecem conceber. Derruba a ideia de que os desenvolvimentos tecnológicos têm por base teorias e conhecimentos científicos e mostra como se pode desenvolver uma parte significativa de uma teoria científica a partir de um projeto de inovação e melhoria tecnológica.
O desenvolvimento da máquina a vapor, e dos aspetos de progresso científico que lhes estão associados, é consensualmente aceite como um acontecimento da história da ciência. São precisamente as características peculiares deste episódio que me remetem a reflexão para outro nível. Histórias idênticas à anterior surgem noutras áreas do conhecimento que, tradicionalmente, não são tidas como científicas. Histórias em que o desenvolvimento tecnológico se consegue à custa de processos empíricos de tentativa-erro. Um desses exemplos é o domínio do fogo. Se na época de James Watt a humanidade aprendeu a converter o fogo em trabalho mecânico, foi há muito mais tempo que aprendemos a fazer uso doméstico desta tecnologia. É claro que não se conhecem os detalhes que rodearam este passo fundamental dos nossos antepassados, mas creio não ser abusivo assumir que se tratou de um processo empírico que poderá, eventualmente, ter partido de alguma observação e prosseguiu com a tentativa de se conseguir o seu domínio. Se este desenvolvimento tecnológico não é tido como científico deve-se mais às conceções enviesadas da ciência, que proliferam por aí, do que à sua própria natureza. À luz do que discuti anteriormente, não tenho dificuldades em classificar este (e outros) eventos históricos como processos de desenvolvimento científico. Não serão as farmacopeias das tribos ancestrais, também conhecimento científico? Certamente que o leitor não terá grande dificuldade em concordar comigo de que estes corpos de conhecimento merecem, tanto quanto os conselhos e recomendações de Hipócrates, o estatuto de científicos.
O fogo e outras ciências não humanas
Investigações recentes encontraram indícios empíricos que há 790 000 anos espécies hominídeas fizeram uso doméstico do fogo, numa região que hoje pertence a Israel (Balter, 2004). Estes não são os únicos vestígios do uso doméstico do fogo desta época. Também os há na Ásia continental e em África. Alguns antropólogos estimam que o uso doméstico do fogo possa ter surgido em espécies hominídeas entre 0,7 e 1,5 milhões de anos atrás. Ainda que, apesar de apontarem nesse sentido, as evidências deste uso domesticado ancestral do fogo sejam indiretas, o domínio desta nova tecnologia explica a colonização de regiões mais frias do globo – como é o caso do planalto de Gadeb na Etiópia ou a Europa e as regiões frias da Ásia – por espécies hominídeas, cujas características fisiológicas não permitem uma sobrevivência nestas regiões, sem recursos tecnológicos (Cela-Conde & Ayala, 2007). A espécie humana – Homo sapiens sapiens – surgiu algures entre os 130 000 e os 200 000 anos atrás (Cela-Conde & Ayala, 2007; Sapp, 2003), muito depois dos primeiros registos de uso doméstico do fogo. Antes de os humanos colonizarem as regiões mais remotas do planeta, estas eram habitadas por espécies hominídeas não humanas como o Homo erectus – surgido há 1,8 milhões de anos – e pelo Homo heidelbergensis – surgido há 500 000 anos. Foram precisamente estas espécies as primeiras a dominar a tecnologia do fogo e, de acordo com Wrangham (2009), usavam-no não só para se aquecerem, mas também para cozinharem alimentos.
Se o leitor comparar as naturezas dos processos que conduziram ao domínio da tecnologia fogo e ao domínio da tecnologia máquina-a-vapor, certamente verificará que as semelhanças são maiores que as diferenças, pelo que ambos poderão ser considerados processos científicos de conquista tecnológica. Posto isto, posso afirmar com alguma segurança, que as origens do empreendimento científico são anteriores à origem da humanidade; a ciência – talvez o empreendimento que mais orgulho trouxe à espécie humana – tem as suas origens fora da humanidade.
As evidências da existência de ciência não humana não se ficam por umas vagas memórias com milhões de anos. Hoje mesmo, enquanto escrevo estas palavras, existem grupos de primatas a construírem e a utilizarem farmacopeias de plantas medicinais. Os estudos de Huffman e Michael (2003) salientam o recurso a plantas medicinais em espécies de primatas diferenciadas como o chimpanzé (Pan troglodytes), o bonobo, também conhecido como chimpanzé pigmeu (Pan paniscus) e o gorila (Gorilla gorilla). O uso de medicamentos por animais não humanos, é também referido por Newton (1991); este autor chega a defender a possibilidade de farmacologistas (humanos) poderem desenvolver ideias de novos medicamentos inspiradas pelo uso que estes primatas lhes dão. Grupos diferentes de primatas da mesma espécie usam plantas diferentes com propósitos idênticos. A farmacopeia é de um determinado grupo, não é comum a todos os elementos da espécie; é um conhecimento cultural de um determinado grupo. Esta situação elimina o gasto, argumento de que os comportamentos de todos os animais não humanos são manifestações inconscientes do instinto. A procura de medicamentos para expelir parasitas intestinais, ou apaziguar uma dor de estômago, revela um caráter investigativo de, pelo menos, alguns membros destas espécies, associada à capacidade de construir conhecimento característico de um grupo-tribo, atestam a sua capacidade destas espécies produzirem cultura (e ciência?).
Antes de terminar…
…gostaria de deixar claro que não é minha intenção defender que as sociedades de chimpanzés, bonobos e gorilas fazem investigação científica e produzem conhecimento de forma semelhante à dos humanos, ou que o H. erectus e o H. heidelbergensis fossem exímios investigadores no domínio da tecno-ciência. Deixo essa decisão ao leitor. É, porém, minha intenção levantar questões e dúvidas sobre as certezas acerca do que é ou não ciência. Sublinhar que as fronteiras do conhecimento (tal como as dos países) são construções artificiais pouco claras. Admito ter imensa dificuldade, no que toca a determinadas áreas do conhecimento, em discernir acerca da sua cientificidade. Quando se manifesta a superstição absurda e ignorante; quando se mercantilizam favores do divino a troco de sacrifícios ou feitiços; quando se defendem teorias ou ideias – frequentemente causadoras de grande sofrimento – porque vêm escritas num livro alegadamente revelado por Deus, não tenho qualquer dúvida em colocar esse conhecimento na prateleira das inutilidades a serem recordadas como curiosidades interessantes produzidas pela inventiva mente humana. Porém, quando me deparo com mundividências apresentadas sobre a forma poética do mito, em que a metáfora assume um papel tão importante como na construção e comunicação científica, quando o  animismo do mundo natural se confunde com as qualidades que percebemos nele, surgem as dúvidas da adjetivação. Estas narrativas parecem-se mais com uma ciência descrita em palavras próprias que relata a diversidade e unidade simultânea do Universo duma maneira distinta na forma, mas igual na natureza à das descrições científicas.
O que é a ciência? Esta é uma pergunta colocada inúmeras vezes por inúmeras pessoas e com inúmeras respostas. A origem da ciência perde-se na vastidão dos milénios e antecede a própria humanidade. Mais do que uma construção humana é uma herança deixada pelos nossos antepassados; mais do que uma afirmação do papel especial que parece ter sido atribuído aos humanos, é uma lição de humildade que recorda aos (presunçosos) H. sapiens sapiens que estão hoje tão ligados ao mundo natural como sempre o estiveram e que, com os olhos postos no passado e, usando as conquistas do saberes científicos, podem olhar em frente e construir um futuro mais justo e sustentado para todas as espécies que habitam a Terra.
Referências bibliográficas
Almeida, A. (2000). A controversa aceitação da teoria da tectónica de placas à luz das ideias de Kuhn Revista De Educação, IX(2), 29-39.
Almeida, M. (2006). Um planeta ameaçado: A ciência perante o colapso da biosfera. Lisboa: Esfera do Caos.
Balter, M. (2004). Earliest signs of human-controlled fire uncovered in Israel Science, 304(5671), 663-5.
Bryson, B. (2005). Breve história de quase tudo (5ª ed.). Lisboa: Quetzal.
Capra, F. (1997). The web of life: A new synthesis of life and matter. Londres: Flamingo.
Carrilho, M. M. (1994). A filosofia das ciências: De Bacon a Feyerabend. Lisboa: Presença.
Cela-Conde, C. J., & Ayala, F. J. (2007). Human evolution: Trails from the past. Oxford: Oxford University Press.
Einstein, A. (2009). Einstein on cosmic religion and other opinions and aphorisms. New York: Dover. (Original publicado em 1931)
Fara, P. (2009). Science: A four thousand years history (1 ed.). Oxford: Oxford University Press.
Figueiredo, O., Almeida, P., & César, M. (2004). O papel das metaciências na promoção da educação para o desenvolvimento sustentável Revista Electrónica De Enseñanza De Las Ciencias, 3(3), 320-338. Retirado de http://www.saum.uvigo.es/reec/volumenes/volumen3/Numero3/ART5_VOL3_N3.pdf
Gribbin, J. (2003). Science: A history. Londres: Penguin books.
Hamilton, S. (2001). Indian philosophy: A very short introduction. Oxford: Oxford University Press.
Hargreaves, A. (2003). Teaching in the knowledge society: Education in the age of insecurity. Maidenhead: Open University Press.
Huffman, & Michael, A. (2003). Animal self-medication and ethno-medicine: exploration and exploitation of the medicinal properties of plants Proceedings of the Nutrition Society, 62(02), 371-381.
Murcia, K. (2009). Re-thinking the Development of Scientific Literacy Through a Rope Metaphor Research in Science Education, 39(2), 215-229. doi:10.1007/s11165-008-9081-1
Newton, P. (1991). The use of medicinal plants by primates: A missing link? Trends in Ecology & Evolution, 6(9), 297-299.
Sapp, J. (2003). Genesis: The evolution of biology. Oxford: Oxford University Press.
Wrangham, R. W. (2009). Catching fire: How cooking made us human. New York: Basic Books.

Créditos
Foto: Fire, por Matthew Venn (Flickr).
Referência do artigo original: Figueiredo, O. (2011). As origens da ciência. Paideia: Revista de Cultura e Ciência, (2), 83-95.

1 comentário:

Anónimo disse...

For newest news you have to pay a quick visit internet and on world-wide-web I found this website as a most excellent site
for hottest updates.

my web page pay day loans uk